Paulo Freire
Toda bibliografia deve refletir uma intenção
fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar
o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a
quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá-la,
ou se a bibliografia em si mesma, não é capaz de desafiá-los,
se frustra, então a intenção fundamental referida.
A bibliografia se torna um papel inútil, entre
outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas.
Essa intenção fundamental de quem faz a
bibliografia exige um triplo respeito: a quem ela se dirige,
aos autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica
não pode ser uma simples cópia de títulos, feita ao acaso,
ou por ouvir dizer. Quem a sugere, deve saber o que está
sugerido e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez, deve ter
nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um
desafio. Desafio que se fará mais concreto na medida em que
comece a estudar os livros citados e não só a lê-los por
alto, como se os folheasse, apenas.
Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de
quem o faz uma postura crítica sistemática. Exige disciplina
intelectual que ano se ganha a não ser praticando-a.
Isto é, precisamente, o que a “educação bancária”² não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside
fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito
investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a
disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a
indispensável criticidade.
Este procedimento ingênuo ao qual o educando é
submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas
ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna
puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam
para outras situações. O que se lhes pede, afinal não é a
compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de
ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a
memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá
respondido ao desafio.
Numa visão crítica, as coisas se passam
diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em
sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação
profunda.
Esta postura crítica, fundamental, indispensável
ao ato de estudar, requer de quem a ele se dedica:
a)
Que assuma o papel de sujeito deste ato.
Isto significa que é impossível um estudo sério
se o que estuda se põe em face do texto como se estivesse
magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força
mágica. Se se comporta passivamente, “domesticamente”,
procurando apenas memorizas as afirmações do autor. Se se
deixa “invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma
numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que
ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de
quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento
histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações
entre o conteúdo em estudo e outras dimensões do
conhecimento. Estudar é uma forma de uma forma de reinventar,
de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de
objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa
tal perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim à sua
atitude crítica em face dele.
A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser
tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma
atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão
de ser dos fatos cada vez mais lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado quando, na
medida em que dele se tenha uma visão global, a ele se volte,
delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para
esta delimitação aclara a significação de sua globalidade.
Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais
do texto que, em sua interação, constituem sua unidade, o
leitor crítico irá surpreendendo todo um conjunto temático,
nem sempre explicitado no índice da obra. A demarcação
destes temas deve atender também ao referencial de interesse
do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito
leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca uma série
de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e que não
é necessariamente a de que trata o livro em apreço.
Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e sua
preocupação, é o caso, então, de fixar-se na análise do
texto, buscando o nexo entre seu conteúdo e o objeto de
estudo sobre que se encontra trabalhando. Impõe-se-lhe uma
exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, em sua
relação com os precedentes e com os que a ele se seguem,
evitando, assim, trair o pensamento do autor em sua
totalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e
sua preocupação, deve-se separá-lo de seu conjunto,
transcrevendo-o em uma ficha com um título que o identifique
com o objeto específico de seu estudo. Nestas circunstâncias,
ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito
das possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a
leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam
aportar novas meditações.
Em última análise, o estudo serio de um livro como
de um artigo de revista implica não somente numa penetração
crítica em seu conteúdo básico, mas também numa
sensibilidade aguda, numa permanente inquietação
intelectual, num estado de predisposição à busca.
b)
Que o ato de estudar, no fundo é uma atitude frente ao
mundo.
Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se
reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto.
Os livros em verdade refletem o enfrentamento de
seus autores com o mundo. Expressam este enfrentamento. E
ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão
expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar
é também e sobretudo pensar a prática e pensar a pratica é
a melhor maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não
deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações com os
outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A
de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.
O exercício desta postura curiosa termina por torná-la
ágil, do que resulta um aproveitamento maior da curiosidade
mesma.
Assim é que se impõe o registro constante das
observações realizadas durante uma certa prática; durante
as simples conversações. O registro das idéias que se têm
e pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes, quando
se caminha só por uma rua. Registros que passam a constituir
o que Wright Mills chama de “fichas de idéias”³.
Estas idéias e estas observações, devidamente
fichadas, passam a constituir desafios que devem ser
respondidos por quem as registra.
Quase sempre, ao se transformarem na incidência da
reflexão dos que as anotam, estas idéias os remetem a
leituras de textos com que podem instrumentar-se para seguir
em sua reflexão.
c)
Que o estudo de um tema específico exige do estudante
que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia
que se refere ao tema ou ao objeto de sua inquietude.
d)
Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo
com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de
que ele trata. Esta relação dialógica implica na percepção
do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do
autor, nem sempre o mesmo do leitor.
e)
Que o ato de estudar demanda humildade.
Se o que estuda assume realmente uma posição
humilde, coerente com a atitude crítica, não se sente diminuído
se encontra dificuldades, as vezes grandes, para penetrar na
significação mais profunda do texto. Humilde e crítico,
sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio, pode
estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o
texto se dá facilmente ao leitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a
necessidade de melhor instrumentar-se para voltar ao texto em
condições de entendê-lo. Não adianta passar a página de
um livro se sua compreensão não foi alcançada. Impõe-se,
pelo contrário, a insistência na busca de seu desvelamento.
A compreensão de um texto não é algo que se recebe de
presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente
problematizado.
Não se mede o estudo pelo número de páginas lidas
numa noite ou pela quantidade de livros lidos num semestre.
Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de
criá-las e recriá-las.
¹Escrito em 1968, no Chile, este texto serviu de introdução à relação bibliográfica que foi proposto aos participantes de um seminário nacional sobre educação e reforma agrária.
Fonte: FREIRE, P. (1982) Ação cultural para a liberdade e outros escritos . Rio de Janeiro: Paz e Terra (6ª edição), pp. 09-12.
Link para o livro completo: http://www.mda.gov.br/portal/saf/arquivos/view/ater/livros/A%C3%A7%C3%A3o_Cultural_para_a_Liberdade.pdf